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O desenvolvimento tecnológico, cada vez mais, vem impactando nossas vidas, inclusive no que diz respeito às relações de trabalho. São notórios todos os avanços e mudanças ocasionados pela tecnologia, com inúmeras ferramentas digitais disponíveis atualmente.

Sem dúvida essa evolução vivenciada tem alterado os processos operacionais e a configuração do trabalho, resultando em novas profissões, novas formas de ofertas e contratação de serviços, assim como diversas outras situações que pertencem a esse novo cenário, e que necessitam de compreensão jurídica para a devida incidência legislativa.

Nessa tentativa de enquadrar novos formatos de trabalho à legislação já existente são inevitáveis os diversos questionamentos e discussões a esse respeito.

Uma dessas discussões foi travada, inclusive, recentemente, quando a Justiça do Trabalho foi instada a se manifestar em relação à existência, ou não, de vínculo de emprego entre o Ifood e seus entregadores profissionais, que prestam serviços de transporte de mercadorias, na modalidade Full Sevice – plano disponibilizado pelo Ifood aos restaurantes que não possuem estrutura própria para realizar a entrega de seus produtos.

Nessa modalidade, a relação de trabalho se resume na seguinte forma: cadastram-se na plataforma do Ifood o restaurante, o consumidor e o parceiro entregador. O parceiro entregador pode ser uma empresa especializada em entrega rápida, chamadas de “operadores logísticos”, ou o próprio trabalhador pessoa física, num formato denominado de “nuvem”. O pedido feito pelo consumidor é encaminhado pelo Ifood para um smartfone, tablete ou computador do restaurante escolhido pelo consumidor e, simultaneamente, para o do parceiro entregador que esteja mais próximo daquele restaurante; caso o pedido seja recusado pelo parceiro entregador, o Ifood continua encaminhando o pedido para outro parceiro entregador até que algum aceite; após o aceite, o trabalhador, geralmente um motoboy, seja por intermédio dos operadores logísticos, seja de forma independente na “nuvem”, retira o pedido no restaurante e entrega no endereço indicado pelo consumidor, recebendo o correspondente pagamento pelo serviço prestado.

Perceba que, nesse formato, o trabalhador pode prestar seus serviços de duas formas na plataforma do Ifood: mediante o intermédio dos “operadores logísticos” ou fazendo seu cadastro diretamente na “nuvem”, de forma independente, sem intermediário.

Ressalte-se que, segundo consta dos autos do referido processo, em ambos os casos o trabalhador tem total autonomia para decidir quando trabalhar (ficar on-line ou off-line na plataforma, aceitar ou não o pedido de entrega), como trabalhar (moto, bicicleta, a pé, etc.) e com quem trabalhar (quais restaurantes e consumidores quer atender).

Enfim, o processo já foi julgado em primeira instância, com a improcedência da ação.

Nesse caso do Ifood, um dos pontos depreendidos é justamente a necessidade de compreensão jurídica desses novos modelos de trabalho que surgem com o mundo digital para a melhor adequação legislativa, e tudo isso fica muito evidenciado na abertura da sentença proferida pela juíza do caso, Shirley Aparecida de Souza Lobo Escobar:

O tema é novo, global e desafiante uma vez que, com a evolução tecnológica, um mesmo modelo de operação comercial, industrial ou de serviços se espalha pelo mundo quase que de forma instantânea, com elementos de figuras jurídicas diversas entremeados e que precisa ser tutelado de acordo com o ordenamento jurídico de cada um dos países nos quais passa a ser utilizado.

Diante o modelo de operação de movimentação de capital e de força humana de trabalho, apresentado na presente ação é inegável que se exige serenidade em sua análise com o objetivo de ter clareza acerca da legislação aplicável ao modelo que já está inserido em nossa organização social, bem como, a partir da definição encontrada, possibilitar a segurança jurídica nas relações, os caminhos para o aperfeiçoamento e o aplainamento do que há de vir e evoluir ou do que há de se tutelar e coibir.

Como se infere, esses novos modelos de trabalhos decorrentes da evolução tecnológica deflagram profundos questionamentos e discussões justamente para proporcionar segurança jurídica às relações laborais estabelecidas nesse cenário, tutelando direitos e coibindo abusos.

Nessa esteira, merece observação as relações laborais tuteladas em nosso sistema jurídico, sendo certo que o trabalhador pode ofertar seu serviço como empregado ou como profissional autônomo, independente do meio tecnológico utilizado para sua constituição e operação.

O emprego é caracterizado, em resumo, pela prestação de serviço disponibilizada pela pessoa física à empresa ou equiparado para esse fim, sob as seguintes condições:

– Subordinação; pessoalidade; habitualidade; e, onerosidade.

Uma vez presentes essas condições na prestação de serviços, a legislação trabalhista passa a incidir sobre a relação de trabalho estabelecida, assegurando direitos ao trabalhador como registro do contrato de trabalho na CTPS, férias remuneradas acrescidas de 1/3, décimo terceiro salário, horas extras, dentre outros, inclusive, previstos nas Convenções Coletivas de Trabalho.

Por outro lado, a ausência de qualquer desses caracteres afasta o reconhecimento do vínculo de emprego, passando a incidir sobre a relação de trabalho, principalmente, as disposições contidas no Código Civil, pertinentes à prestação de serviço dos trabalhadores autônomos, que prestam serviços de acordo com sua formação, experiência e/ou equipamentos operacionais para outras pessoas ou empresas em troca de remuneração, sendo eles mesmos os próprios responsáveis por deliberar sobre quando, como e com quem trabalhar.

Inclusive, na sentença do caso Ifood a juíza expõe a seguinte diferenciação: “A prestação de serviços abrange, necessariamente, prestações laborais autônomas, ao passo que o contrato empregatício abrange necessariamente, prestações laborais subordinadas”.

Acerca do requisito subordinação, Maurício Godinho Delgado assevera:

Não obstante a relação de emprego resulte da síntese indissolúvel dos cinco elementos fático-jurídicos que a compõem, será a subordinação, entre todos esses elementos, o que ganha maior proeminência na conformação do tipo legal da relação empregatícia. (Curso de Direito do Trabalho, Mauricio Godinho Delgado, 12ª ed. São Paulo: LTr 2013, p. 292).

Neste sentido o Colendo TST já decidiu, senão vejamos:

EMENTA: RECURSO DE REVISTA. VÍNCULO EMPREGATÍCIO. REQUESITOS. SUBORDINAÇÃO. A decisão do Tribunal Regional acerca da questão se fundamentou no conjunto probatório, consignando a ausência de subordinação entre reclamante e reclamado. Assim, a reforma dessa decisão é inviável, dado que a aferição das alegações recursais requereria novo exame do escólio probatório, inviável via recurso de revista, conforme orienta a Súmula 126 do TST. Recurso de revista não conhecido.               (TST – Recurso de Revista nº 122800-82.2009.5.03.0106, 6ª Turma, Relator Augusto Cesar Leite de Carvalho, Publicado no DEJT em 06.09.2013).

Amauri Mascaro Nascimento conceitua subordinação como:

(…) uma situação em que se encontra o trabalhador, decorrente da limitação contratual da autonomia da sua vontade, para o fim de transferir ao empregador o poder de direção sobre a atividade que desempenhará (Iniciação ao Direito do Trabalho, Amauri Mascaro Nascimento, 38º edição, São Paulo: LTr 2013, pag. 174).

Observe que não apenas para o caso do Ifood, mas também, para outras relações de trabalho é importante avaliar a dicotomia – autonomia versus subordinação, para que não haja confusão sobre as relações de trabalho estabelecidas, ainda que em razão da evolução tecnológica.

Para configurar o vínculo empregatício é importantíssimo e obrigatório que haja as condições já citadas anteriormente (subordinação, pessoalidade, onerosidade e habitualidade). Quando o profissional se coloca a disposição numa relação de prestação de serviços autônoma está subtendida, a priori, sua autonomia profissional. Justamente por isso o caso Ifood foi julgado improcedente, sob a seguinte análise:

Em resumo, restou demonstrado que o trabalhador se coloca a disposição para trabalhar no dia que escolher trabalhar, iniciando e terminando a jornada no momento que decidir, escolhendo a entrega que quer fazer e escolhendo para qual aplicativo vai fazer uma vez que pode se colocar à disposição, ao mesmo tempo, para quantos aplicativos desejar.

Registre-se que não estamos entrando no mérito do impacto econômico e social, acerca de benefícios versus prejuízos dos novos modelos de trabalho, especialmente quando decorrentes de momentos de crise.

O presente artigo apenas pontua, brevemente, sobre os desafios jurídicos em face das novas modalidades de trabalho advindas do avanço tecnológico, acerca das características da relação de emprego versus a relação de serviço autônomo para que se evidencie a diferenciação, sendo certo que até pouco tempo grande parte dos trabalhadores autônomos eram profissionais com algum conhecimento técnico especializado em determinada área (pedreiro, eletricista, dentista, advogado), porém atualmente novas configurações surgiram possibilitando que muitos trabalhadores, especializados ou não na prestação do serviço, coloquem-se a disposição para trabalhar de forma livre e autônoma, e tudo isso é possível devido aos avanços da tecnologia que abriram as portas dos “serviços sob demanda” e as plataformas digitais da “Economia GIG”.